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ASSIM FALOU BENEDITO
Em versão impressa (livro) e digital (ebook)!
Para garantir o seu, basta acessar:
A irrealidade das formas,
o abstrato tomando-se visível pelas linhas disformes e ao mesmo tempo tão... Tão...
Perfeitas. Vejo os passos incertos que seguem pelo caminho tortuoso e que se
estende até o infinito abrindo-se em grandes galhos de uma árvore que se mostra
frondosa e cujos frutos caem para as profundezas do inferno. O antagonismo da
busca do paraíso que só existe no olhar de quem já viu o inferno. A dicotomia
aparente da realidade. A ignorância que só é visível diante da descoberta.
Às vezes me sinto assim,
buscando elucidar minha ignorância, mesmo quando não há nada a ser desvendado.
Sei que cada dia que passa minha ignorância aumenta. A minha, e a dessa
criatura sentada ao meu lado. Benedito...
Queria que ele gritasse,
me xingasse ou em um acesso de insanidade se jogasse pela janela. Queria reação
daquele corpo inerte, queria nele as manifestações da minha loucura, para
depois acusá-lo de insano, mas sei que não vai fazer. Benedito não se mexe há
anos. Continuaremos assim, ele inerte naquela cadeira e eu... Louca.
Passa das duas da manhã e
enfim, consigo enviar o arquivo com todas as ilustrações que selecionei e que
farão parte da exposição dos jovens surrealistas da atualidade do Estado.
Ao estender os braços
para cima, senti todas as minhas articulações estalarem e ao mesmo tempo meu
celular indicando o recebimento de uma mensagem.
“Tu tá fedendo a mofo.”
“Onde tu está?”
Respondi e, em menos de um
minuto, o retorno:
“Na zona. E tu?”
“No quarto ao lado.” - Continuei.
Veio a resposta:
“Tu não ia gostar daqui.”
“Pq?”
Incentivei. Sabia que
viria uma piadinha.
“Não tem múmia.”
Não resisti:
“Só viado.”
Enquanto fechava o
computador, o celular tocou, me assustando.
- Assustou o Bendito. Quase
saiu correndo do museu.
- Mais fácil ele sair do
que tu.
- O que tu quer?
- Consegui as entradas
para a estréia da peça amanhã.
- Sabia que não ia me
decepcionar.
- Me deve essa. Passo na
sua casa, amanhã às sete.
- Te espero, saio do museu
às seis. Beijo.
- Farah...
- O que?
- Vai pra casa.
Segui o conselho de
Edgar, meu amigo de todas as horas. Olhei para Benedito e consertei:
- Ok, ok... Tu também. -
Peguei minha bolsa, que estava no colo de Benedito. - Boa noite. - Falei para
ele, que mantinha seus olhos de vidro fixos em um ponto na minha mesa. - Tuas
faixas estão desenrolando, Benedito. Não quero te ver pelado na minha frente. -
Arrumei a faixa do pescoço que caia pela lateral do corpo do modelo de múmia.
Um tapinha no ombro... – Tchau, amigo. Amanhã nos vemos.
No estacionamento, no
subsolo do museu, apenas o guarda cochilando na cadeira. Assustou-se quando me
viu:
- Dona Farah... Desculpa.
- Boa noite, Ernesto.
No meu carro, um bilhete
no pára-brisa:
“Se bem te conheço, deve
ser perto das três da manhã. Se quiser uma cama quente, companhia agradável, e
um café da manhã especial, sabe onde encontrar. Marina.”
Um suspiro acompanhou meu
olhar para o relógio: duas e trinta. Concluí sorrindo: “Como é ruim ser
previsível...”
Acelerei em direção
àquela proposta irrecusável.
***
Tem momentos estranhos,
muito estranhos na vida da gente. Quando todas as certezas e estruturas que
levamos anos para criar de repente caem por terra. Desintegram-se como cartas
mal equilibradas ou castelos de areia. Em momentos como esse, existem duas
saídas: olhar para dentro ou simplesmente... Não olhar. Eu estava vivendo a
segunda opção. Não queria nem podia parar para refletir. Preferia não pensar.
Estava nesse ritmo há mais
de dois anos. Trabalhando, bebendo, fumando e trepando muito mais do que
supostamente poderia aguentar. Mas duas coisas me moviam: uma lacuna profunda e
a necessidade vital de me anestesiar.
Atirar-me de braços
abertos sobre ela - era a minha forma de derrotar a insanidade. Na verdade,
pessoas como eu normalmente andam com a loucura lado a lado. Aos beijos, se for
necessário. Faz parte do maligno pacto que fazemos ao abrir mão de toda e
qualquer forma de vida cotidiana, banal e pacata.
Mas nenhuma amargura
acompanha esses pensamentos. Apenas a consciência de que existem escolhas, cada
uma com sua parcela de vantagens e desvantagens. Eu havia feito a minha. Sem me
arrepender, nem hesitar. Sabendo que era a única possível. Qualquer outra me
faria sufocar.
Estava gelatinando¹ o
último refletor, e me preparando para começar afinar a luz, e gravar a mesa,
quando ouvi alguém me chamar:
- Ana?
Olhei para baixo. Parada
no meio do palco, segurando entre as mãos algo que parecia um copo de plástico,
Cássia, a assistente de produção do espetáculo. Com o sorriso sedutor de sempre
ao completar:
- Trouxe um café pra
você, linda.
Olhei para o relógio de
pulso. Duas e meia da manhã. Pra quem ia passar o resto da noite montando a luz
do espetáculo como eu ia ficar, café era irrecusável.
Coloquei os pés nas
laterais, por fora da escada, e desci deslizando. Muito mais fácil do que usar
os degraus. E impunha aos outros técnicos do teatro - sempre homens - o
respeito necessário. Na verdade o que acontecia - e eu já estava habituada -
era que a minha aparência não ajudava. Parecia feminina demais, delicada demais
para uma profissão em que pouquíssimas mulheres se aventuravam. Já estava mais
do que acostumada aos olhares de ironia e descrédito... Que terminavam assim
que eu começava a trabalhar.
- Não entendo porque você
faz questão de subir com esses refletores super pesados enquanto seu assistente
– apontou para Ricardo, o rapazinho que era meu estagiário - fica aqui embaixo
anotando. Não deveria ser o contrário?
Realmente, era o que
todos esperavam. Exatamente por isso não era como eu trabalhava:
- Eu sou mais rápida.
E era verdade. Afinal de
contas, o rapaz ainda estava aprendendo, quase não entendia nada. Era mais fácil
ele ficar anotando os canais onde eu plugava cada refletor.
Com um suspiro de
reprovação, ratificado por um leve balançar de cabeça de um lado para o outro,
Cássia me estendeu o copo de café, falando:
- Bom, você é que sabe.
O café não estava muito
quente - ainda bem, porque eu não suportava comer nem beber nada quente demais -
por isso nem precisei esperar esfriar. Tomei rapidamente, em grandes goladas.
Entre tragadas apressadas num cigarro que ela solicitamente acendeu e estendeu
para mim.
- Devagar. Quero te
aproveitar mais... - ela me lançou um olhar absolutamente mal intencionado... Que
fingi ignorar:
- Preciso voltar ao
trabalho.
Depois de uma última
tragada, atirei o cigarro no copo onde tinha deixado um restinho de café
exatamente para isso. Entreguei o copo para ela, agradeci, e comecei a subir na
escada. Sabendo perfeitamente que Cássia deveria estar me olhando no mínimo
irritada. Pouco me importava. Não tinha nem queria ter o que quer que fosse com
ela. Nunca havia prometido nada. Queria deixar bem claro que não ia passar do
que acontecera há algumas noites atrás: um único momento enlouquecido. Sexo
puro, mais nada. Sem sentimento, envolvimento, nem direito a “revival”.
Fazia mais de dois anos
que eu não queria nem me relacionava emocionalmente com ninguém. Não depois do
término do meu último namoro, com minha ex exigindo exatamente o que eu nunca
tinha sentido vontade de dar: o próximo passo.
Além disso, eu seguia à risca o ditado popular: “onde se ganha o pão não
se come a carne”. Ou seja: jamais com alguém do meu trabalho. Mas naquela
noite, sabe-se lá por que razão atroz... Talvez o excesso de alcóol, solidão,
carência, ausência, necessidade, ou uma mistura fatídica desse todo... O fato é
que... Não havia conseguido resistir aos
encantos - que não eram poucos - da morena sensual. Mais uma das minhas
muitas burradas. Agora só me restava colocar uma pedra em cima. E ponto.
Já estava quase
terminando de afinar a luz quando Ricardo, na cabine, acendeu a geral.
Totalmente desafinada, era só o que me faltava...
Normalmente a geral e a
contra luz do teatro já ficavam prontas e afinadas, a única coisa que eu
precisava fazer era gelatinar. Chamei:
- Jamanta?
Jamanta era o técnico do
teatro. O apelido não podia ser mais perfeito, o cara era imenso, um verdadeiro
“armário”.
- A geral tá vazando nas
laterais.
Ele deu de ombros, com
aquele jeito lento e despreocupado de quem não é perfeccionista
obsessivo-compulsiva como eu. Depois tentou explicar:
- Não tem ponte, tem que
subir de escada, e é muito alto.
Passei a mão pelo pescoço
e suspirei, exasperada. Maldizendo-me mentalmente por não conseguir
simplesmente ignorar e me poupar do trabalho a mais:
- Pega a escada. Vou
afinar.
Jamanta me fitou de olhos
arregalados, mas fez o que pedi. Firmou a parte de cima da escada na vara onde
os refletores estavam pendurados, encostou os pés entre as cadeiras da platéia
e ficou apoiando para que não escorregasse.
Olhei para cima,
calculando: uns doze metros mais ou menos - um prédio de três andares. Altura
nunca havia sido problema para mim. Mais do que acostumada, eu adorava. Quando
criança vivia subindo nas coisas, a ponto dos meus pais implicarem comigo,
dizendo que numa vida anterior eu deveria ter sido uma macaca.
- Eu falei que era alto.
Jamanta interpretou mal
meu momento de reflexão. Sorri para o homenzarrão, que pelo visto, sofria de
algum tipo de acrofobia. Dei dois tapinhas amigáveis no ombro dele antes de
exclamar:
- Jamanta, o dia que eu
tiver problema com altura eu me aposento, pode deixar.
E subi rapidamente, sem
pestanejar.
Depois de afinar todos os
refletores, fui para a cabine, onde Ricardo já havia marcado com fita crepe
todos os canais da mesa. Só faltava gravar. Mas isso só com os atores, no
ensaio de luz.
Apaguei o cigarro. Olhei
para o relógio: cinco da manhã.
- A que horas tá marcado
o ensaio?
Ricardo conferiu no meio
dos milhares de papéis que ele tinha num fichário:
- Onze.
Espreguicei, alongando os
braços e a coluna, antes de falar:
- Perfeito. Vou pro hotel
descansar. Dez pras onze tô de volta. Você vem?
Ricardo respondeu, já
pegando os fones do MP3:
- Não. Vou tomar um café,
e ficar por aqui. Se eu dormir não acordo mais.
Novatos... Não dava um
mês para que ele aprendesse a aproveitar qualquer intervalo. Assim que as
noites dormindo se tornassem raras, e fosse rotina passar noites em claro.
Me despedi de Jamanta e
peguei um táxi até o hotel. Entrei no quarto onde os meninos – o cenógrafo e o
coreógrafo para ser mais exata – ainda estavam dormindo. Sempre optava por
dividir o quarto - quando era preciso - com homens gays, para evitar situações
desagradáveis.
Não que eu me achasse
irresistível ou algo do gênero, mas... Já havia sido surpreendida mais de uma
vez por investidas indesejadas de homens, lésbicas e até de mulheres hetero
movidas pela curiosidade.
Verdade seja dita, tudo
bem, eu estava mesmo numa fase totalmente “pegadora”, mas mantinha alguns
critérios de seletividade. Primeiro porque não tinha encontrado meu corpo no
lixo. Segundo porque detestava ser cantada.
O que eu gostava mesmo
era de caçar, especialmente as que se faziam de difíceis, as que resistiam e me
obrigavam a ter um pouco de trabalho. Afinal, meu prazer se resumia ao antes e
ao durante, depois do sexo eu não conseguia mais ver a graça. Não era uma
opção, era... O suspiro veio involuntário. Ciente do quanto a minha eterna e
mórbida incapacidade de envolvimento maior tinha sido responsável por todos os
meus términos de relacionamentos. Uma vida a duas... Não que eu fugisse ou
tivesse medo, mas... Talvez não existisse mulher capaz de me fazer querer mais,
desejar mais... Ou talvez... Eu apenas não fosse capaz. Era mais fácil aceitar
minha vocação para ser solitária... E parar de acumular fracassos e ex
namoradas ressentidas e magoadas.
Acertei o despertador
para as 10h. Tomei um banho rápido, me vesti inteira. Tinha esse hábito quando
ia ter poucas horas de sono: dormir vestida para já estar pronta quando
levantasse. Me atirei na cama, morta de cansaço. E em questão de segundos não
estava mais acordada.
Meu dia transcorreu sem
grandes surpresas. De uma forma até rotineira. O ensaio acabou por volta das 15h.
Almocei com o pessoal da equipe técnica num restaurante perto do hotel - com
Cássia se atirando para cima de mim, e eu pensando:
“Será possível? Essa
mulher não se toca?”
Dormi o restinho da tarde.
Acordei por volta das 19h. Tomei banho, jantei sozinha - nem um pouco a fim de
enfrentar novamente o assédio da morena - e fui para o teatro. Direto para a
cabine, onde fiquei fumando e jogando conversa fora com Jamanta e Ricardo.
Até levantar, me
espreguiçando, e constatar:
- Preciso de um café.
***
O interfone anunciava meu
atraso, corri e pedi para Edgar esperar alguns minutos, o que fez. Porém,
reclamou assim que abri a porta do carro:
- Falei que passava às
sete.
- Falei que saio do museu
às seis.
Ele sorriu, no momento
que sentei no assento ao lado, e sentenciou:
- Você está um arraso,
loira. Vai matar ou morrer.
- Estou indo ao teatro,
Edgar, não à caça.
- Não, minha linda loira
platinada... Deixou de ser caça há tempo, agora estamos em guerra.
Riu das próprias palavras.
Eu também.
- Acelera. Estamos
atrasados.
- A culpa é sua.
Escolhi um CD e no
caminho ouvi todas as fases que Edgar precisou vencer para conseguir os
ingressos, pois estavam esgotados. Desde que soube que esse espetáculo entraria
em cartaz em Porto Alegre
não dei sossego a ele, que por sua vez deixou para comprar nos últimos dias e
consequentemente não conseguiu. Fiquei furiosa e não dei trégua, até que ele
conseguiu com sua prima, que descobriu pela namorada que tem um tio que
trabalha com o Juca, cujo namorado perdeu a avó e os dois precisaram viajar
para o interior e não poderiam assistir à peça...
Tentava me explicar esse
parentesco absurdo que deixei de entender quando chegou no Juca ou no tio do
Juca, sei lá, quando entramos em um dos estacionamentos do teatro.
- Edgar... Quer saber?
Para! Não me conta mais nada.
Saí do carro com ele
atrás tentando me explicar a árvore genealógica do Juca.
Assim que entramos,
localizamos nossos lugares, mas percebemos que haveria um pequeno atraso, o que
era normal. Aproveitamos para ir ao café do teatro no pavimento inferior. O teatro
estava lotado e o acesso às escadas entulhado de gente.
- Vai na frente, loira. Pra
ti abrem caminho.
Segurei a mão dele e fui
pedindo licença. Ele soltou minha mão e fez sinal para que eu continuasse. Viria
atrás.
Prossegui, tentando
alcançar as escadas, olhando para o chão, evitando pisar em alguém com o salto
da minha bota... Ou tropeçar no tapete.
- Odeio escadas... - Falei
para mim mesma
- Quem sabe desistimos? -
Ouvi ele dizer lá atrás.
- Capaz! Jamais! - Respondi.
Coloquei a mão no
corrimão e o pé no primeiro degrau. Senti-me segura e levantei os olhos. Abaixo
de mim, no primeiro degrau, fazendo movimento contrário... Ela subia.
Com a mão no corrimão, o
pé no degrau, levantou os olhos em minha direção.
E eu desci... Presa
naquele olhar.
Por alguns momentos,
nossos movimentos sincronizaram: Ela subia... Eu descia...
Nunca gostei de escadas,
e agora queria passar o resto de minha vida descendo aquela.
Degrau a degrau, ela os
vencia, eu os perdia...
Cada movimento me levava
em direção aquele olhar... Mais um pouco... Isso...
Castanhos, não! Marrons.
Expressivos, profundos...
Não olhei mais para o
chão, para o corrimão, não olhei para mais nada que não fossem aqueles olhos
que subiam, enquanto eu... Descia.
Cada passo dela, sabia
que era, também, um meu... Os degraus sumiram, entre nós somente a dúvida: quem
solta o corrimão primeiro? Quem dá o primeiro passo para o próximo degrau? Eu
soltei, ela também. Fizemos o mesmo movimento para o mesmo lado, os cabelos
negros balançaram na minha frente. Voltei e segurei o corrimão.
Ela entendeu, passou... Eu
fiquei.
Ela subiu... Eu desci.
Edgar me alcançou,
colocou a mão em meus ombros. Olhei para cima, tentei em vão localizá-la, não
consegui. Porém, fiquei com uma certeza. Jamais esqueceria aquela escada e seus
degraus mágicos, pois desci sem tocá-los.
***
- Merda!
A exclamação saiu sem
querer, quando o líquido terrivelmente quente me queimou a língua. O resultado
foi um sorrisinho da garota atrás do balcão. Enquanto esperava o café esfriar,
troquei algumas palavras com ela, com uma simpatia despreocupada e sem maiores pretensões.
Apenas para matar o tempo.
Acenei para ela em
despedida, antes de sair em direção ao teatro e à cabine de som. Coloquei a mão
no corrimão da escada, pronta para subir correndo, apressada, os olhos fixos
nos degraus, como sempre fazia.
Inexplicavelmente - algum
tipo de força desconhecida? Uma comprovação explícita de que o inevitável
existe? Ou simplesmente sem motivos nem razões palpáveis, como tudo que é capaz
de alterar nosso destino? - ergui os olhos... E a vi.
Vindo em minha direção,
como se nossos passos nos levassem juntas a algum tipo de sintonia.
Escadas...
Faziam parte, tinham uma
importância fundamental em minha vida. Mas aquela era a primeira vez que eu
realmente tomava consciência disso. No momento em que aquele olhar intenso,
antropofagicamente azul, me engolia. Mariposa rodopiando, caminhando sem rumo -
Eu descia? Eu subia? Eu já não sabia... - Em torno do facho de luz que ela
emitia...
E então... Os degraus
entre nós sumiram, e ela parou na minha frente, na superioridade de estar um
patamar acima... Me obrigando a erguer a cabeça para olhar. Embevecida, paralisada pela imagem
quase etérea de tão linda.
Soltamos o corrimão ao
mesmo tempo. Nos movemos para o lado, também em uníssono. Nossos olhos se
provaram, por um segundo profundamente destituído de sentido.
Ela voltou e segurou o
corrimão, me fazendo entender que fosse o que fosse aquele esbarrar de
percepções fugidias, não passava de um instante transitório e finito.
Passei por ela
rapidamente. Apressada em voltar à realidade, ao alívio de respirar sensações
que eu conhecia.
Foi assim.
Ela ficou. E eu fugi.
De volta à cabine...
A imagem dela. Era só o
que eu via. A ponto dos meus olhos perdidos se manterem calados, esquecidos de
onde estavam e para que serviam.
Alguns atores estavam se
aquecendo no palco. De repente, um deles chutou um dos refletores de chão. Sem
querer, é claro. Mas o meu:
- Puta que pariu!
Foi inevitável. Ainda bem
que o coitado não ouviu. Ficou se desculpando, absolutamente sem graça.
Tentando olhar para a cabine sem enxergar, por causa da luz na cara. Falei para
Ricardo:
- Deixa comigo. Vou lá.
Desci, atravessei a
platéia, subi no palco. Me ajoelhei em frente ao PC². Felizmente não estava
quebrado. Gritei:
- Acende, Ricardo! - Eu
estava impaciente, irritada. O tempo que ele demorou pareceu uma eternidade.
Tanto que gritei: - Chão vermelho 12, Ricardo!
Percebendo que eu não
estava para brincadeira, ele foi rápido. Afinei o refletor na minha frente. E
percebi que não era o único desafinado.
- Malditos atores!
Deixei escapar para mim
mesma, bem baixo. Estava começando a mexer nos outros quando Cássia apareceu:
- Preciso abrir, Ana!
Suspirei antes de
responder:
- Tá. Fecha a cortina.
Quando eu terminar passo por fora. Avisa ao Ricardo.
Ela concordou com a
cabeça. Talvez assustada com meu tom de voz absolutamente mal humorado.
As cortinas foram
fechadas. O barulho do público entrando chegou aos meus ouvidos, me fazendo trabalhar
rápido. Levantei, limpei a mão nas calças. Avisei aos atores que estavam por
perto da forma mais gentil que pude:
- Cuidado com os
refletores.
Pensei: “Caralho...”
Ricardo - em sua
inexperiência e falta de atenção total - havia deixado os refletores de chão
ligados. Ou seja: eu precisava chegar à cabine antes de começar o espetáculo.
Passei pela porta que
liga o palco ao corredor do teatro correndo. Cheguei na entrada da platéia,
onde o bilheteiro recolhia os ingressos. Não consegui falar com ele de
imediato. Meus olhos grudaram na mulher que estava me impedindo de passar:
loira, alta, cabelos lisos cortados deixando à mostra a nuca e o pescoço. Interessante,
no mínimo...
Afastei a idéia
rapidamente. Não tinha tempo para aquele tipo de pensamento. Não naquele
momento. Falei apressada, deixando a educação completamente de lado:
- Será que você pode sair
da minha frente?
A mulher se virou e dois
olhos absurdamente azuis me fuzilaram. Na mesma hora fiquei toda arrepiada, por
que... Era ela. A mesma loira de olhar celeste da escada.
Notas:
¹Gelatinar = colocar gelatina no refletor. Gelatina é o
nome popular do filtro plástico colorido usado nos refletores para iluminação,
é o que dá cor à luz.
²PC = Refletor Plano Convexo - Refletor de ótica simples,
com uma lente lapidada em plano convexo, obtendo-se assim controle do facho de
luz. Usado para se obter focos mais nítidos e sombras duras, usado para
pequenas e médias distâncias.
CONTINUA...
postado originalmente em 20 de Agosto de 2013 às 15:38
O:
ASSIM FALOU BENEDITO
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